Já trouxe este assunto ao cadikim, quando rolava a CPMI do Cachoeira (sumiu, hein?!!! Ninguém mais fala...). Está em http://cadikimdicadacoisa.blogspot.com.br/2012/05/jogo-do-bicho-tambem-e-cultura.html.
Relendo o livro "Subterrâneos do Futebol", de João Saldanha (para variar, comprado em sebo; acho que não se encontra mais), encontro o assunto folclórico colocado de forma muito legal. Antes, e para os que chegaram depois de 1970 (ou depois de 1990, porque, então, detalhes da Copa de 1970 já não estavam muito à mão), lembro que João Saldanha, jornalista, foi o técnico que classificou a seleção brasileira para a Copa daquele ano. Apelidado de "João sem Medo", repeliu insinuação do Presidente da República, Garrastazu Médici, que, em entrevista a Armando Nogueira, teria dito que gostaria de ver Dario (o Dadá Maravilha) na seleção, no lugar de Tostão, que se recuperava de uma cirurgia para corrigir descolamento na retina. Perguntado a respeito, João Saldinha disse: "Olha, o presidente escala o ministério dele; eu escalo o meu time". É claro que não escalou mais. Para o lugar dele, convocaram Zagallo, provavelmente o futebolista mais bem sucedido na história do futebol brasileiro.
Feito o devorteio, voltemos ao outro assunto folclórico - o jogo do bicho. João Saldanha conta que o Botafogo foi jogar no Nordeste, e de lá seguiria para Caracas. Um atraso no vôo de Belém do Pará para Caracas - marcado para as quatro da tarde, só sairia no dia seguinte à noite - obrigou a delegação a permanecer em Belém. Houve tempo para tertúlias. Aí, vamos ao texto original do João sem Medo:
"Aloísio recebeu os talões da bagagem e fomos para o ônibus. Nisto o Birruma exclamou:
- O senhor não está manjando nada?
Olhei em volta, não vi nada de mais e perguntei o que era. Birruma expôs:
- O número de nosso vôo termina em quarenta. O avião era Convair 240. Aqui é a terra do Quarenta. Vamos para o Hotel Coelho. O talão da bagagem termina em 39 e esse ônibus é 38. Tudo coelho. Tá na cara. Será que tem jogo aqui?
Tinha. Em cada esquina importante, lá estava o balcãozinho com o resultado anterior. A segunda extração corria às três horas e dava tempo de sobra. Terminado o almoço, todos foram pra lá. Até o Cavalcanti, alto funcionário do Ministério da Fazenda.
Como estávamos uniformizados, com paletó azul-marinho e calça cinza-escuro, o grupo chamava a atenção. Num instante começou a onda: 'Olha o Didi! Olha o Nílton. Vai ter jogo aqui?'.
- Vai sim - respondeu o Tomé. - Onde é o jogo do bicho?
Quando chegamos à esquina, vinha um bando enorme atrás e ao nos dirigirmos para a porta de entrada, o bicheiro evaporou e fechou rápido.
.........................................................................................................................................O bicho era franco e até o governador Barata poderia fazer sua fezinha. Talvez não pudesse. Segundo diziam, ele era o banqueiro.
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Íamos saindo quando parou um táxi e saltaram três homens. Um, de terno de linho branco engomado, camisa de seda, um bruto anelão no dedo e de chapéu-de-chile, foi perguntando:
- O que é que há por aqui? Que onda é essa?
- Chegou a Polícia - disse Carvalho Leite. - Vamos ficar. Pode dar galho.
Nisto, Aloísio Birruma gritou, fraternalmente:
- Alfredão, meu chapa! Você por aqui?!
- Como vai, Aloísio, o que que há? Que onda é essa? - respondeu o homem da camisa de seda.
O Aloísio explicou:
- O cara daí apavorou e fechou a porta. O pessoal quer jogar no coelho. É só isso.
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A turma ia entrando e fazendo o jogo. O primeiro foi o Aloísio que entrou compenetado e mandou brasa:
- Mil cruzeiros no grupo do coelho, quinhentos no milhar 1340 e quinhentos na centena. Dois mil, não é?
Os outros foram nas águas do Aloísio. Só que jogaram cinqüenta por cento da parada do Birruma. A torcida também entrou e acho que jogaram a mesma coisa.
O Alfredão, com atitudes de diplomata, só dizia:
- Façam o favor. Estejam à vontade.
Mas não podia esconder certa preocupação, e Tomé falou baixinho:
- Se dá coelho com 1340, este careta vai sumir na floresta amazônica.
Mas o Alfredão era todo gentilezas. Convidou todo mundo para um refresco e foi explicando:
- Estou aqui há seis meses. O homem me chamou para ser gerente do negócio. Vamos indo muito bem. Não tenham medo. Se dá coelho, às três e meia recebem. Se quiserem mando pagar no hotel. Para falir o bicho aqui, só falindo o Banco do Estado primeiro. Entenderam?
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Fizemos as apresentações formais:
- Aqui o senhor Cavalcanti, fiscal federal do Ministério da Fazenda - disse eu.
- Alfredo Alonso, mais conhecido como Alfredão. Sou o gerente do... quer dizer... da... loteria diária aqui de Belém.
E nos convidou para assistir á extração que era ali pertinho.
- Já está na hora - disse ele -, mas só corre quando eu chegar.
O Cavalcanti hesitou e não queria, mas Carvalho Leite insistiu:
- Vamos lá. Assim vai passando o tempo.
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Alfredão tomou a palavra e disse com um vozeirão:
- A extração de hoje será feita com a presença dos diretores do Botafogo, do Rio de Janeiro - e apontou para nós que estávamos com o uniforme do clube.
Carvalho Leite murmurou:
- Se o presidente Paulo Azeredo visse esta cena, abortava um filho.
Mas o Alfredão prosseguiu:
- Também estão presentes o senhor Garrincha, o senhor Tomé e o senhor Didi (Palmas estrondosas). Também está presente - continuou Alfredão, sempre de chapéu-de-chile na cabeça e fazendo suspense -, também está presente o senhor Cavalcanti, fiscal federal do Ministério da Fazenda.
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Desta vez houve uma exclamação geral de admiração e depois perguntava-se: 'Agora está legal?! Está legal?! Saiu o decreto?!' ".
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NOTA: Segundo o cronista, o jogo do bicho correu em Belém do Pará, com a presença anunciada, aplaudida e geradora de esperanças de um fiscal federal do Ministério da Fazenda. Parece que tudo faz sentido.
FONTE: Os Subterrâneos do Futebol - João Saldanha - Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1982.
IMAGEM: Capa do livro.
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