12 de jun. de 2014

NELSON RODRIGUES: ANTES DA COPA DE 58, LEMBRANDO A DE 50

Nelson Rodrigues
Sei que os tempos são outros. Mas acho que vale a pena transcrever Nelson Rodrigues, no mínimo para homenagear uma obra do relicário da crônica brasileira. Vamos lá:




"O BRASIL VACILA ENTRE O PESSIMISMO MAIS OBTUSO E A ESPERANÇA MAIS FRENÉTICA"

Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - 'O Brasil não vai nem se classificar!' E, aqui, eu pergunto: não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado? § Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: - menos a dor de cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse 'arrancou' como poderia dizer: - 'extraiu' de nós o título como se fosse um dente. § E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: - é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar  na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício. § Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas?: Eu poderia responder, simplesmente, 'não'. Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho. § A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de 'complexo de vira-latas'. Estou a imaginar o espanto do leitor: - 'O que vem a ser isso?' Eu explico. § Por 'complexo de vira-latas' entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos 'os maiores' é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Já na citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos. § Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-lata e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-lata, eis a questão.

Fonte: Livro "Brasil em campo", de crônicas de Nelson Rodrigues, organizado por Sonia Rodrigues, pág. 25, Editora Nova Fronteira (Crônica publicada na revista "Manchete Esportiva", em 31/5/1958).

Foto (editada): Contra-capa do livro. 

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